Ao som da chuva

Não dá pra ver
nenhum dos teus passos
na calçada.
Não há a partida impressa
pra dar água na boca
de lembrar.

Mas os olhos da ânsia
provocam
e concretizam
a chegada.

Não importa que o moderno
despenque gotas ácidas
e que na calçada
molhada
escorreguem as ilusões.

O som da chuva
persiste
imutável
aconchego.

(Marta Cocco, Divisas)


Repente

De repente da dor fez-se o santo
do desespero fez-se o canto
e o dinheiro arrancou-se do pranto.

De repente da fé fez-se o milagre
e o ingênuo cabeça de bagre
tomou como vinho o vinagre.

De repente de um se fez mil
que é fácil multiplicar o vil
e mais roubar sob este céu de anil.

De repente fez-se a indústria da fome
do homem que devora o homem
e depois do voto se some.

De repente o que era claro ficou escuro
o que prestava tornou-se impuro
e quem era pra ser já não é país do futuro.

De repente não tão de repentemente
desde o ano um mil e quinhentos
que este povo cala e consente.

(Marta Cocco, Partido)

A neo-rapunzel borralheira

Cortaram meus sonhos
minha força
meus cabelos.
Perdi meus sapatos
meu caminho de ida e de volta
meu baile de amor.
Danem-se as modernas formas de viver.
Não é digno a uma mulher andar num pé só.
Danem-se mais ainda
os itens antigos de fragilidades.
Eu só preciso de uma escada.
Descer e subir
sucumbir e crescer
dou conta.

(Marta Cocco, Meios)