Diário de Bordo

"O pior não é tanto estarmos sós, pois isso já é
sabido e nem tem solução. Estar só é definitivamente estar só
dentro de um certo plano, no qual outras solidões poderiam
comunicar-se conosco se a coisa fosse possível.”
(Julio Cortazar)


Mistura. Tudo misturado e eu não sei se conto uma, duas, três, ou mil, ou todas as histórias. Os limites, se existem, são tênues. Quase simbólicos. De atravessando mares, talvez. Intento engolir o cigarro que me rejeita enojado. Quantos risos ou alegrias compõem esse fio? De quem mesmo é esse rosto? Quanto tempo eu levaria para contradizê-lo? Ou essa história? Desde que haja uma. Um corte. Sangue escorrendo por montanhas íngremes. Elas são sempre assim. Dos labirintos marroquinos disfarçados de cidades sinto falta das cores. Dos desenhos e de mim mesmo nas tardes frias de sol. E dos meninos que vendiam chocolates. Um banho turco talvez. Acompanhado de massagem, poderia relaxar o mundo da memória. Ou a memória do mundo. Ou o total esquecimento. O que aquele menino de cara suja queria comigo me arrastando em seu espanhol africanizado de amigo, amigo, para uma sauna estranha entre os becos? E por que me lembro dele? O desenho das unhas encardidas de terra marroquina, o cabelo bem penteado, mas grosso de sujeira, os olhos profundamente negros... Que diabo de mar é esse? Que diabo de mar é esse afogando-me no deserto? Se eu tivesse tempo, se o mundo fosse eterno, tudo seria pouco para o labirinto em que fui jogado. Amigo, amigo... Usted, bagno, saber massage. Bom, bagno, Deus!!! Que espécie de haxixe exalava de mim e dele? Sinto sempre aquele cheiro podre do curtume em Fez não em náuseas, mas em águas coloridas. Reflito-me nessas águas. Não quis escapar, quis? Tornar-me o próprio Marrocos, as medinas assustadoras e confusas, tantas vezes por estranhos invadido. Amigo... amigo que jorro transbordante fez dele o Atlas, as montanhas de Rifi, as longes neves no deserto, o mar azul de Casa Blanca, as mesquitas de Marraquech? Ruas entulhadas de gente colorida que ele percorria enquanto eu tentava um rasgo de razão e sensatez. Para não ser a paisagem do deserto. Para não ser apenas a paisagem. Para não ser apenas o deserto. Para errático não penetrar no labirinto daquelas mãos que suavemente suavam-me. De quem mesmo é esse rosto? Quanto tudo aquilo me custou? O incômodo da memória? O desconforto de uma saudade de nunca mais? A quem aqueles olhos de deserto afogam agora? Só agora eu atravesso o Gibraltar! De quem são essas mãos que deslizam por esse rosto? De quem mesmo é esse rosto? Existe um corpo para tudo isso? Por que tudo pesa tanto? Conta a lenda, e a lenda sempre conta, que os pernilongos disfarçam-se de desejo travestidos em nuvens revirando-se em paixões antigas. Eu poderia simplesmente inventar! Tudo tão mediocremente certo que daria enjôo. Enjôo de felicidade. Mas me recuso a inventar algo que lembre vagamente esses sorrisos monalísicos de algum tipo de satisfação feliz em museu. Mesmo que não passe de um da minha história natural. A minha vingança, pelo meu desassossego, é que tudo só será o que eu quiser que seja. E não quero nada de bom. Quero o triste, o abandono, o trágico simples-cotidiano na essência dolorosa da destruição. Não construo. Não quero construir, quero expor, ridicularizar, demolir, humilhar, diluir. A boca do esgoto aberta que conta histórias de gentes. Num movimento alucinado de carros as sirenes do meu coração gritam no entardecer. No reflexo do meu relógio de avenida, sigo os transeuntes. Que são sombras. Pequenas máscaras daquele carnaval em Veneza em que chovia. Tudo, um dia, afunda mesmo, sole mio' E daí que os turistas tenham que conhecer a antiga casa de Goethe embaixo de relâmpagos e trovões, enquanto a São Marcos nos afoga a todos? E aquelas tolas pombas, amestradas, de circo, que os velhos gostam de alimentar? Tudo, um dia. afunda mesmo, sole mio! And a big moon eats my eyes. Gatos no cio que rodeiam a casa dentro de mim nessa minha insegurança de achar que é sempre e só ela que gira. Mas aqui já não há mais Veneza caro mio! Prego! Grazie mille tanto! Eu tomo o meu café onde bem entender e não vou pagar mais caro por isso. Estou já entre as estradas do Parnaso, comprando anéis em Delfos, me perguntando pelas musas. Viro-me para o oráculo de Apolo e a Sibila ri. Que mistério da existência desejaria saber nesse exato momento? Minhas preocupações são sempre miúdas e rasteiras como eu mesmo. Que gene decadente e corrosivo, corroído, terá transformado a antiga e famosa beleza grega nesse monte de narigudos que se espremem por Atenas? E que só sabem dizer em brasileiro Zico, Pelé, felá da puta? De quem é esse rosto? Por acaso, os meus dólares não se cambiam? Cada pedaço dos clichês que me compõem eu mesmo recolho na cova rasa enquanto chove frio no templo de Afrodite. E, na minha própria mágica de descriar os mundos, encontro-me frente a frente, no mais absoluto silêncio de não palavras, com o Moisés, o mármore branco, de onde poderia sair o verbo. Num outro ponto da cidade, observo absorto a Pietá enquanto espero que ela levante o rosto e me pergunte, com o filho ao colo: Vê o que fizeram? Mas agora destino nenhum me interessa mais porque o sol de lucatá é muito quente e o mar de Cancun é criação de um deus coreldraw poderosíssimo. Que espécie de azul é aquele? Perdido entre uma gente morena, pequena, que se retrata branca, grande e poderosa? Que espécie de maravilhosos anões, de pés minúsculos subiam por aqueles mínimos degraus de escadas dos templos? E para fazer o que lá em cima? Que mistério mais profundo da existência eu desejaria saber agora? Sacrificavam mesmo gente? Por acaso, sou eu a oferenda desse dia? Partindo da minha dissipação, me transformo. AIgo nesse momento se rompe, bifurca, assusta. Meu suor me devora gota a gota e eu não sei o que fazer com a chuva. Choro calmamente diante da Medusa no Officci e começo de novo a preparar as malas. Um rapaz-vendedor da Armani na Quinta Avenida me convida para entrar. Welcome, please! Follow-me, please! No, thanks! No me gusta! Eu não vou entrar de novo na floresta refletida pelas lentes do óculos de sol num entardecer americano. Basta-me o deserto marroquino. Que me faz apenas espectro do esquecimento. De quem mesmo é
esse rosto? Outro corte, outro rio. O lago que me espera. Quanto tempo é preciso para que se leia tudo o que já se escreveu? Bom, ruim, médio, nem bom nem ruim? Quanto? Ninguém sabe, não porque seja muito. Porque ninguém sabe! Porque não interessa. O que já se escreveu de tão profundo, tão profundo, tão-tão profundo que chegou no Japão? Nada. Por que o caminho para o Japão não é esse? Mas eu sempre vejo os japoneses e gosto deles. E eu sei que a máscara de Mishima, transmoldada no sensual São Judas, cola no meu rosto sempre. E tudo, então, para mim nunca é o meu próprio haraquiri. Meu espírito não é de samurai. O que há de guerreiro em mim é o medo. O medo imenso, o medo cego. O medo só. Ele transforma minhas guerras em... fugas humilhantes. Se rei ou se lei... que diferença há nisso? Um f sempre há de haver. Qualquer, mas sempre f. Na verdade eu sempre quis que me deixassem em paz para mim mesmo. Mas torna e retorna e voltam sempre me assombrando. Afinal, o que tudo quer exatamente de mim? Vou dar pouco, muito pouco. Só mesmo a minha irritação, solidão, fantasmas e desistórias. No máximo, um final de dança de salão em Sevilha. Ou, quem sabe, um pequeno souvenir de La Mancha. Quando muito uma caixa de fósforo em cerâmica obscena mal copiada dos antigos vasos gregos. Centauros de paus enormes perseguindo virgens esvoaçantes. De quem mesmo é esse rosto? Muitos fatos, muitos feitos, não é aqui comigo. Prego! PIease! Amigo! Permiso! Gracias! FoIlow-me! FoIlow-me?????De quem mesmo é esse rosto? Outro corte, outro rio. O lago me espera. Então, qual é a culpa? Não se sabe, não interessa. Mas o que se busca? Um rosto talvez? O meu?
Faltam-me as palavras, porque não é um caso de descrever, nem narrar. É um caso de perceber e sentir. Nem muito menos adiantaria imprimir na borrada cerâmica que imita antiguidades, nem ser o casal vencedor no passo doble, ou simples e descuidadamente vestir a camisa Armani. Ou ainda dizer Parla! E chegar ao Japão. Resolveria ter o pau enorme? Mergulhar no banho turco? Sons, vozes longínquas, clamando o silêncio que eu não posso dar ou fazer. Mas não sei negar. Que se negociem, então, as misérias, que se juntem e se toquem as solidões e que cada um salve-se como... convier? De quem mesmo é esse rosto? Outro corte. O lago me espera. Por que a Sibila riu?

(Mário Cezar Silva Leite em “ Na margem esquerda do rio: contos de fim de século”)