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Mistura. Tudo misturado e eu não sei se conto uma, duas, três,
ou mil, ou todas as histórias. Os limites, se existem, são tênues.
Quase simbólicos. De atravessando mares, talvez. Intento engolir o
cigarro que me rejeita enojado. Quantos risos ou alegrias compõem esse
fio? De quem mesmo é esse rosto? Quanto tempo eu levaria para contradizê-lo?
Ou essa história? Desde que haja uma. Um corte. Sangue escorrendo por
montanhas íngremes. Elas são sempre assim. Dos labirintos marroquinos
disfarçados de cidades sinto falta das cores. Dos desenhos e de mim
mesmo nas tardes frias de sol. E dos meninos que vendiam chocolates. Um banho
turco talvez. Acompanhado de massagem, poderia relaxar o mundo da memória.
Ou a memória do mundo. Ou o total esquecimento. O que aquele menino
de cara suja queria comigo me arrastando em seu espanhol africanizado de amigo,
amigo, para uma sauna estranha entre os becos? E por que me lembro dele? O
desenho das unhas encardidas de terra marroquina, o cabelo bem penteado, mas
grosso de sujeira, os olhos profundamente negros... Que diabo de mar é
esse? Que diabo de mar é esse afogando-me no deserto? Se eu tivesse
tempo, se o mundo fosse eterno, tudo seria pouco para o labirinto em que fui
jogado. Amigo, amigo... Usted, bagno, saber massage. Bom, bagno, Deus!!! Que
espécie de haxixe exalava de mim e dele? Sinto sempre aquele cheiro
podre do curtume em Fez não em náuseas, mas em águas
coloridas. Reflito-me nessas águas. Não quis escapar, quis?
Tornar-me o próprio Marrocos, as medinas assustadoras e confusas, tantas
vezes por estranhos invadido. Amigo... amigo que jorro transbordante fez dele
o Atlas, as montanhas de Rifi, as longes neves no deserto, o mar azul de Casa
Blanca, as mesquitas de Marraquech? Ruas entulhadas de gente colorida que
ele percorria enquanto eu tentava um rasgo de razão e sensatez. Para
não ser a paisagem do deserto. Para não ser apenas a paisagem.
Para não ser apenas o deserto. Para errático não penetrar
no labirinto daquelas mãos que suavemente suavam-me. De quem mesmo
é esse rosto? Quanto tudo aquilo me custou? O incômodo da memória?
O desconforto de uma saudade de nunca mais? A quem aqueles olhos de deserto
afogam agora? Só agora eu atravesso o Gibraltar! De quem são
essas mãos que deslizam por esse rosto? De quem mesmo é esse
rosto? Existe um corpo para tudo isso? Por que tudo pesa tanto? Conta a lenda,
e a lenda sempre conta, que os pernilongos disfarçam-se de desejo travestidos
em nuvens revirando-se em paixões antigas. Eu poderia simplesmente
inventar! Tudo tão mediocremente certo que daria enjôo. Enjôo
de felicidade. Mas me recuso a inventar algo que lembre vagamente esses sorrisos
monalísicos de algum tipo de satisfação feliz em museu.
Mesmo que não passe de um da minha história natural. A minha
vingança, pelo meu desassossego, é que tudo só será
o que eu quiser que seja. E não quero nada de bom. Quero o triste,
o abandono, o trágico simples-cotidiano na essência dolorosa
da destruição. Não construo. Não quero construir,
quero expor, ridicularizar, demolir, humilhar, diluir. A boca do esgoto aberta
que conta histórias de gentes. Num movimento alucinado de carros as
sirenes do meu coração gritam no entardecer. No reflexo do meu
relógio de avenida, sigo os transeuntes. Que são sombras. Pequenas
máscaras daquele carnaval em Veneza em que chovia. Tudo, um dia, afunda
mesmo, sole mio' E daí que os turistas tenham que conhecer a antiga
casa de Goethe embaixo de relâmpagos e trovões, enquanto a São
Marcos nos afoga a todos? E aquelas tolas pombas, amestradas, de circo, que
os velhos gostam de alimentar? Tudo, um dia. afunda mesmo, sole mio! And a
big moon eats my eyes. Gatos no cio que rodeiam a casa dentro de mim nessa
minha insegurança de achar que é sempre e só ela que
gira. Mas aqui já não há mais Veneza caro mio! Prego!
Grazie mille tanto! Eu tomo o meu café onde bem entender e não
vou pagar mais caro por isso. Estou já entre as estradas do Parnaso,
comprando anéis em Delfos, me perguntando pelas musas. Viro-me para
o oráculo de Apolo e a Sibila ri. Que mistério da existência
desejaria saber nesse exato momento? Minhas preocupações são
sempre miúdas e rasteiras como eu mesmo. Que gene decadente e corrosivo,
corroído, terá transformado a antiga e famosa beleza grega nesse
monte de narigudos que se espremem por Atenas? E que só sabem dizer
em brasileiro Zico, Pelé, felá da puta? De quem é esse
rosto? Por acaso, os meus dólares não se cambiam? Cada pedaço
dos clichês que me compõem eu mesmo recolho na cova rasa enquanto
chove frio no templo de Afrodite. E, na minha própria mágica
de descriar os mundos, encontro-me frente a frente, no mais absoluto silêncio
de não palavras, com o Moisés, o mármore branco, de onde
poderia sair o verbo. Num outro ponto da cidade, observo absorto a Pietá
enquanto espero que ela levante o rosto e me pergunte, com o filho ao colo:
Vê o que fizeram? Mas agora destino nenhum me interessa mais porque
o sol de lucatá é muito quente e o mar de Cancun é criação
de um deus coreldraw poderosíssimo. Que espécie de azul é
aquele? Perdido entre uma gente morena, pequena, que se retrata branca, grande
e poderosa? Que espécie de maravilhosos anões, de pés
minúsculos subiam por aqueles mínimos degraus de escadas dos
templos? E para fazer o que lá em cima? Que mistério mais profundo
da existência eu desejaria saber agora? Sacrificavam mesmo gente? Por
acaso, sou eu a oferenda desse dia? Partindo da minha dissipação,
me transformo. AIgo nesse momento se rompe, bifurca, assusta. Meu suor me
devora gota a gota e eu não sei o que fazer com a chuva. Choro calmamente
diante da Medusa no Officci e começo de novo a preparar as malas. Um
rapaz-vendedor da Armani na Quinta Avenida me convida para entrar. Welcome,
please! Follow-me, please! No, thanks! No me gusta! Eu não vou entrar
de novo na floresta refletida pelas lentes do óculos de sol num entardecer
americano. Basta-me o deserto marroquino. Que me faz apenas espectro do esquecimento.
De quem mesmo é
esse rosto? Outro corte, outro rio. O lago que me espera. Quanto tempo é
preciso para que se leia tudo o que já se escreveu? Bom, ruim, médio,
nem bom nem ruim? Quanto? Ninguém sabe, não porque seja muito.
Porque ninguém sabe! Porque não interessa. O que já se
escreveu de tão profundo, tão profundo, tão-tão
profundo que chegou no Japão? Nada. Por que o caminho para o Japão
não é esse? Mas eu sempre vejo os japoneses e gosto deles. E
eu sei que a máscara de Mishima, transmoldada no sensual São
Judas, cola no meu rosto sempre. E tudo, então, para mim nunca é
o meu próprio haraquiri. Meu espírito não é de
samurai. O que há de guerreiro em mim é o medo. O medo imenso,
o medo cego. O medo só. Ele transforma minhas guerras em... fugas humilhantes.
Se rei ou se lei... que diferença há nisso? Um f sempre há
de haver. Qualquer, mas sempre f. Na verdade eu sempre quis que me deixassem
em paz para mim mesmo. Mas torna e retorna e voltam sempre me assombrando.
Afinal, o que tudo quer exatamente de mim? Vou dar pouco, muito pouco. Só
mesmo a minha irritação, solidão, fantasmas e desistórias.
No máximo, um final de dança de salão em Sevilha. Ou,
quem sabe, um pequeno souvenir de La Mancha. Quando muito uma caixa de fósforo
em cerâmica obscena mal copiada dos antigos vasos gregos. Centauros
de paus enormes perseguindo virgens esvoaçantes. De quem mesmo é
esse rosto? Muitos fatos, muitos feitos, não é aqui comigo.
Prego! PIease! Amigo! Permiso! Gracias! FoIlow-me! FoIlow-me?????De quem mesmo
é esse rosto? Outro corte, outro rio. O lago me espera. Então,
qual é a culpa? Não se sabe, não interessa. Mas o que
se busca? Um rosto talvez? O meu?
Faltam-me as palavras, porque não é um caso de descrever, nem
narrar. É um caso de perceber e sentir. Nem muito menos adiantaria
imprimir na borrada cerâmica que imita antiguidades, nem ser o casal
vencedor no passo doble, ou simples e descuidadamente vestir a camisa Armani.
Ou ainda dizer Parla! E chegar ao Japão. Resolveria ter o pau enorme?
Mergulhar no banho turco? Sons, vozes longínquas, clamando o silêncio
que eu não posso dar ou fazer. Mas não sei negar. Que se negociem,
então, as misérias, que se juntem e se toquem as solidões
e que cada um salve-se como... convier? De quem mesmo é esse rosto?
Outro corte. O lago me espera. Por que a Sibila riu?
(Mário Cezar Silva Leite em “ Na margem esquerda
do rio: contos de fim de século”)
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