PRIMEIRA ESCRITA

Minha primeira escrita foi a lápis
As recordações estão frescas
e ainda sinto o fino sem gosto
do estilete de grafita
(do sol)
à sombra da língua torcido
em lentas concentrações
O lápis era um pouco de silêncio
ao sabor dos meus dedos
Era cheio de uma vontade própria que era só minha
e suavemente passeávamos
no horizonte da caligrafia
Tenho para mim
que eu dava vida ao lápis
fosse na escola ou na lição de casa
Meu lápis:
horizontal dentro do estojo
Dormi ali
É nele que ainda mora o meu traço
penoso esforço
de em mil maneiras me escrever
errar, apagar e novamente escrever
até me tornar simples no que vou dizer.

MEIA-LUA

Em certos dias
à moda das coisas variáveis
(e numa condição particular)
vou me fechando ao apetitoso céu

É um jeito não muito claro
de migrar ao centro da idéia entrando por todos os poros
(a ressurreição é contrária)
Meus órgãos de movimento
são as palavras
para um ponto de vista comum
que se há de multiplicar
como a meia-lua sem peso
na vida diária da unha
morta de viver sempre crescendo
sem sair do lugar
Meia-lua, à vista
cá em baixo
na base da unha do polegar
Por detrás desta única fase
eu mudo muito
(em corpo e ânimo)


O QUE PARECE PEQUENO

Quem pode
livrar-me de repetir que grande mesmo
é o que parece pequeno?
Se não me dobro
ao sentimento amargo
estou deixando de agradar-me
Se a pura criação existisse
eu não diria o que digo:
o vasto manancial
que vem do povo
e enche os vasos
também é dado de valor
um cúmulo de requinte
ao contrário
que a poesia não recusa.


ZONA CRÍTICA

A chuva se prolonga
alaga a cidade
desfigura a cidade
faz mofar minha casa
A zona crítica é meu coração
com a água a atingir
a soleira do alarmismo
os sonhos estacionados
em desgoverno.


VASOS BRANCOS

Muito faço por mim
quando me rendo
a certas alegrias.
Meus objetos
não são outra coisa
senão fontes de abundância.
Há na casa vasos brancos de porcelana
que não são para flores.
Um filho de Deus
com a alma que lhe foi dada
corpo roupa sapato
tendo bebido e comido
de tudo que lhe foi ofertado
pode atravessar salas
de modo grave oprimido
e algumas vezes ter
não apenas um coração pulsando
mas também
um desejo natural de alívio.
Em boa hora se desfaz
do conteúdo que jamais encanta.
Por pequeno que seja o acontecimento
na visão do amor se agiganta.