Notas sobre História da Cultura Mato-grossense

Olga Maria Castrillon-Mendes

Os estudos revisionistas sobre a produção cultural de Mato Grosso têm mostrado o quanto é vasta e variada a bibliografia e o alcance das perspectivas mobilizadas pelos intelectuais a partir da década de 1930.
Rubens de Mendonça, Lenine Póvoas, Hilda Magalhães, Carlos Gomes de Carvalho, são alguns dos estudiosos preocupados com a recuperação da produção histórico-cultural, cobrindo variedade de temas, que vai desde a produção dos cronistas do século XVIII e viajantes naturalistas, até as iniciativas contemporâneas impulsionadas pelo surgimento das Universidades Federal e Estadual, na segunda metade do século XX.
Coincidindo com o processo de divisão do Estado e o surto desenvolvimentista, resultante dessa nova fisionomia, Mato Grosso reinventa-se. Em parte pela expansão dos negócios e dos programas governamentais, mas muito pela redescoberta do interior, cuja gênese pode ser atribuída à descentralização da UNEMAT, nos anos 90. Cumpre-se, assim, a visão vanguardista de Mendonça e de Póvoas que, como “antenas da raça” poundianos, já sinalizavam para a necessidade do reconhecimento das diferenças na composição do conjunto identitário da região. Homens que pensaram à frente e compuseram as mais sólidas e eruditas observações documentais sobre o assunto. Sabemos, no entanto, que as “histórias” são apenas uma parte do universo crítico desses autores, a ponto de, juntos, comporem o universo de representação do que se procura compreender sobre o sentido de Mato Grosso.
Falemos de parte desse universo com uma obra singular: História da cultura mato-grossense, de Lenine de Campos Póvoas (1921-2006), um filho das terras cuiabanas, que concluiu sua formação em ciências jurídicas, no Rio de Janeiro. Inscreveu-se na política, nas letras e na cultura do Estado, contribuindo, dentre outros escritos, com estudos da geografia e da história de Mato Grosso. Possui uma vasta produção intelectual e um legado que continua a estirpe do pai, o lingüista e professor Nilo Póvoas. Esteve ligado às necessidades dos jovens com relação ao conhecimento sobre a região, por isso, escreveu obras resumidas, acessíveis a estudantes, como História de Mato Grosso (1985), ao lado de outras de grande fôlego como os dois volumes da História Geral de Mato Grosso (1995).
Eu diria, forçando uma comparação, que no conjunto da sua obra, a História da Cultura mato-grossense (1982) constitui uma fonte primária. Uma espécie de laboratório das experiências do escritor em meio aos documentos e com o sentimento de amor à terra e o exercício do olhar de sagaz observador.
Na obra estão traçadas as matrizes culturais do Estado. Desde as primeiras manifestações de cronistas e de viajantes naturalistas, passando por instituições de ensino, de divulgação e de produção popular, até o advento do rádio, da televisão, da Universidade Federal e de órgãos culturais subvencionados pelo Estado, num momento em que o poder público mantinha vivo interesse pelo patrimônio cultural e homens como Lenine Póvoas, administravam setores da cultura com a paixão telúrica e o espírito da polis como consciência que rege a comunidade humana.
Inserido no princípio do mundo modificado pela ação humana e da educação como essência da comunidade, a História da Cultura, de Póvoas mostra o lugar privilegiado da tradição herdada. Traz, por isso, um panorama amplo no gesto organizador do escritor a partir de um rico depósito de documentos e de lembranças. Da gênese ao florescimento das artes contemporâneas, construindo não só um referencial histórico, mas a “síntese de tendências universalistas e particularistas”, de que fala Antonio Candido ([1957], 1997, p. 23), formadora da literatura brasileira, abarcando a dimensão da função histórica e do aspecto orgânico do processo criativo.
O texto conduz, também, à ruptura de estereótipos. Decididamente, Mato Grosso não foi (e muito menos é hoje) uma região ignorante e isolada dos grandes centros culturais. Pelo contrário, muito antes da criação da Capitania, mesmo em precárias condições, o teatro germinava na Colônia. Os relatos de viagem informam sobre uma vida cultural intensa, formando um quadro que, se por um lado demonstra a formação Ilustrada dos administradores, por outro registra o domínio de ideais civilizatórios.

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